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 INSEGURANÇA ALIMENTAR 

 COMUNIDADES QUILOMBOLAS 

Quando a modernidade e as tradições se encontram

Nas comunidades quilombolas cearenses, a pandemia de Covid-19 e as dificuldades econômicas transformam as rotinas alimentares.

     

         rabalhar com a agricultura familiar é saber que nós estamos trabalhando entre nós e com nós." É assim que Marleide do Nascimento, presidente do Conselho de Igualdade Racial de Horizonte, descreve o impacto sentido em virtude das mudanças que a pandemia de Covid-19 causaram  na Comunidade Quilombola do Alto Alegre, situada na Região Metropolitana de Fortaleza (CE). Ela conta que o período foi desafiador e exigiu adaptações, principalmente no cenário de isolamento social, quando agricultores se viram obrigados a permanecer em casa.

 

As mudanças foram estratégicas: desde o método de plantio à retirada dos produtos, tudo foi pensado para haver o mínimo de contato possível entre o grupo. O momento da debulha do feijão, antes realizado em conjunto nos terrenos com todas as mulheres da comunidade, não poderia mais acontecer. Para ela, a grande dificuldade foi encontrar o ponto de equilíbrio entre os cuidados sanitários e a manutenção dessas atividades que, hoje, são a principal forma de sustento das famílias que ali vivem. Diante disso, o movimento de quilombolas no Ceará solicitou o apoio do Governo do Ceará no envio de cestas básicas e, atualmente, os quilombos certificados têm recebido ajuda.

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A certificação das comunidades, de acordo com a Fundação Cultural Palmares, responsável pelo processo, “é o primeiro passo para a demarcação e titulação de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, como reconhecimento de que a comunidade existe baseada em sua história, costumes e, principalmente, sua cultura”. Os primeiros certificados, conforme dados da Fundação, foram emitidos em 2004. Desde então, 3.271 comunidades foram certificadas no país. Deste número, apenas 174 são tituladas.

No Ceará, segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), existem 70 comunidades reconhecidas pela Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas do Ceará (Cequirce), distribuídas em mais de 30 municípios.

Desse número, 42 possuem o certificação concedida através da Fundação Palmares, como as que estão localizadas nos municípios de Acaraú, Aquiraz, Araripe, Baturité, Caucaia, Coreaú/Moraujo, Crateús, Crotá, Horizonte, Ipueiras, Iracema, Itapipoca, Monsenhor Tabosa, Novo Oriente, Ocara, Pacujás, Potengi, Quiterianópolis, Quixadá, Salitre, São Benedito, Tauá, Tamboril e Tururu.

Conforme dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o orçamento para titulação de terras caiu 97% entre os anos de 2010 e  2018. Para 2018, foi previsto  menos de R$1 milhão para a titulação dos mais de 1,7 mil processos abertos.

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Quilombos são classificados como reconhecidos, certificados ou titulados

Evandro Ferreira, professor e presidente da Associação Comunitária dos Quilombolas da Serra do Evaristo, viu a situação alimentar das 160 famílias que vivem na comunidade piorar com o agravamento da pandemia. “É uma comunidade essencialmente rural e a gente sobrevive aqui basicamente da agricultura de subsistência, da aposentadoria, dos programas do Governo Federal, como o Bolsa Família[...]”, comenta.

Localizada no município de Baturité (CE), a 80km de Fortaleza, a comunidade quilombola tem na comercialização de banana uma de  suas maiores formas de sustento econômico. Algumas pessoas trabalham também no setor de construção em outras cidades do Brasil, passando de 3 a 6 meses fora. Para Evandro, a alta no preço dos alimentos, junto ao desemprego crescente, também foi determinante no aumento da percepção de dificuldades alimentícias.

Para Marleide, no entanto, apesar da situação de insegurança alimentar entre algumas famílias, esse cenário é ainda mais presente nas zonas periféricas urbanas. Segundo ela, o diferencial está no apoio oferecido através de instituições, como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e os recursos destinados para a assistência social no município: 

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Existem outras comunidades que não são quilombolas, outros bairros que não são quilombolas, que são periféricos e que a grande maioria da população é pobre e está passando muito mais vulnerabilidade alimentar que a gente, até pelo fato de não ter a mesma assistência que, na maioria das vezes, os quilombos têm

diz Marleide do Nascimento, presidente do conselho de Igualdade Racial de Horizonte

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Em meio às dificuldades enfrentadas em razão da pandemia, as parcerias com entidades diversas foram essenciais para amenizar os impactos na população. Na Comunidade da Serra do Evaristo, foram buscadas parcerias com o Centro de Estudos do Trabalho e Assessoria ao Trabalhador (Cetra), projeto Mesa Brasil, Fundação Banco do Brasil, Fundação Baobá e, também, com instituições educacionais, como o Instituto Federal de Educação do Ceará (IFCE) e a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). “Buscamos algumas ajudas de cesta básica, de produtos de higiene [...],  porque neste tempo da pandemia tudo piora. As coisas estão muito caras, né? Então é difícil.”, desabafa Evandro.

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Serra do Evaristo | Fotos do arquivo pessoal de Evandro Ferreira

Em dezembro de 2020, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) distribuiu mais de 4 mil cestas de alimentos para as comunidades quilombolas, distribuídas em 27 municípios do Ceará. Posteriormente, em abril de 2021, houve a entrega de uma nova remessa. Cada kit contém 21 kg de produtos: 10 kg de arroz, 4 kg de feijão, 2 kg de farinha, 2 kg de açúcar, 1 kg de flocos de milho, 1 kg de macarrão e 1 kg de leite em pó.

Na Constituição de 1988 (CF/88), o Art. 68, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, traz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

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Acesso a alimentos X Manutenção de costumes

Marleide comenta que, apesar do Quilombo de Alto Alegre fazer parte da zona rural, o município de Horizonte é primordialmente industrial e que isso afeta diretamente os costumes alimentícios. “Os quilombolas estão, a grande maioria, saindo da agricultura familiar, migrando para trabalhar nas indústrias e isso faz com que eles tenham um recurso mensal, né? Embora pra gente isso não seja um avanço, na verdade, porque eu particularmente penso que fortalecer os quilombos não se insere diretamente em estar dentro de empresas negacionistas e que querem apenas tirar os direitos da gente, inclusive das nossas terras, né?”, comenta.

Hoje, a população tem acesso a supermercados, mas também produz. Além das plantações de feijão e das colheitas de castanha de caju, a Comunidade tem uma hidroponia que, no momento, está desativada, mas lá eram realizadas as vendas dos produtos cultivados . A escola local também possuía uma alimentação diferenciada por receber diretamente dos fabricantes mas, com a pandemia, esse processo também foi interrompido.

A professora universitária e engenheira agrônoma, Jaqueline Sgarbi, comenta que, diante da circulação de produtos industrializados em escala global, a tendência é que principalmente os mais jovens recorram a eles. “Isso tem muito a ver também com o risco que a gente tem da perda da agro e biodiversidade, né? Na medida que algumas sementes não são mais plantadas, algumas mudas não são mais plantadas [...] Essas comunidades acabam sendo os guardiões de tradição, de um patrimônio alimentar, tanto material quanto imaterial”, comenta.

As mudanças alimentares são percebidas por Marleide do Nascimento a partir de alguns fatores externos: "Antes nós tínhamos o peixe que era pescado diretamente no córrego Irerê, que era um córrego que tinha aqui na comunidade. Hoje nós não temos mais esse córrego porque o Governo Federal, junto ao Estadual, há uns anos atrás criou o Programa de Abastecimento Hídrico, onde criaram um Canal do Trabalhador, e aí esse canal perpassou a comunidade e acabou com o córrego que existia”.

O Canal do Trabalhador, construído em 1993 durante o governo de Ciro Gomes, tem 113 km de extensão. Ele capta águas do rio Jaguaribe, na altura de Itaiçaba, e despeja no Açude Pacajus, garantindo o abastecimento de água da Região Metropolitana de Fortaleza.

As águas são transportadas ainda para o Açude Pacoti através do Canal do Ererê e, em seguida, para o Açude Gavião via Canal Riachão-Gavião.

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Ela também aponta  a extinção das plantas nativas em virtude da ocupação das grandes empresas no município de Horizonte. “Outra coisa que acontece também é a oportunidade que nós temos de ter um acesso mais fácil a esses produtos, como biscoito, refrigerante, o pão? Então, aumentou o consumo”, acrescenta.

Políticas públicas de incentivo

Diante das mudanças nas práticas alimentares, algumas políticas públicas buscam fortalecer a agricultura familiar. O programa Hora de Plantar, por exemplo, é desenvolvido através da Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ceará, possibilitando  o acesso dos pequenos produtores a sementes, mudas e outros equipamentos. Na Comunidade da Serra do Evaristo, o acesso é restrito à semente de milho. Além disso, através de parceria com o Cetra, a população tem uma Casa de Semente Comunitária e, em parceria com o IFCE Baturité, foi desenvolvido um projeto com mulheres da região para viabilizar o aproveitamento de restos de frutas e cascas.

Um dos pontos de atenção está, porém, no acesso aos recursos hídricos. A região não possui açudes ou rios, então depende, na maioria das vezes, das cisternas de placa, que foram instaladas através do Programa de Convivência com o Semiárido. Evandro Ferreira relata que, a partir do mês de agosto, quando as águas ficam mais escassas, as famílias recorrem ao uso de carro pipa, que vem do centro de Baturité.

Para Evandro, é possível imaginar um futuro em que as pessoas das comunidades possam  consumir alimentos mais nutritivos, desde que haja a cooperação do poder público na promoção de ações que possibilitem isso.

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