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 INSEGURANÇA ALIMENTAR 

 PANDEMIA 

Insegurança alimentar em pratos limpos

O que a pandemia levou à mesa dos brasileiros mais vulneráveis

   
       tarde já virava noite quando Lúcia Carvalho, de 52 anos, anunciou o cardápio do jantar daquele sábado: arroz com ovo. Para o almoço do dia seguinte, já estavam separados oito pedacinhos de carne. As peças foram cuidadosamente divididas, de modo que todos os familiares pudessem desfrutar igualmente da proteína, tão rara na mesa daquele e de tantos outros lares.

“Meu irmão veio aqui em casa e trouxe essa carne para mim. Cortei bem pequeno, que é para durar até o jantar de amanhã. É um pedacinho para cada pessoa. Depois de amanhã, só Deus sabe o que vamos comer”, afirma a costureira, que é aposentada por invalidez devido a diversos problemas de saúde.

Lúcia divide as refeições com dois filhos - uma adolescente de 15 anos e um adulto de 23 anos - e uma nora. Todos moram na mesma casa de fundos no Genibaú, bairro que detém o quarto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza.

Assim como a família Carvalho, 125,6 milhões de brasileiros enfrentam a chamada insegurança alimentar (IA). O termo é usado para caracterizar situações em que há dificuldade para garantir alimentação em plena quantidade e qualidade, de forma contínua, sem interferir em outras necessidades financeiras. Segundo estudo feito por cientistas da Alemanha e do Brasil, o problema atingiu pelo menos 59% dos domicílios brasileiros no último trimestre de 2020.

A

Proporção da situação de segurança alimentar nos domicílios das/os entrevistadas/os, 2020

gráficos 1 eixo 1.png

0%

40%

80%

40,6%

59,4%

Segurança Alimentar

Insegurança Alimentar

Fonte: Food for Justice Working Paper Series

Sem emprego fixo, os familiares de Lúcia dependem do benefício da aposentadoria da matriarca para pagar contas e custear alimentação. Mas dos R$ 1.100 ganhos, só lhe restam R$ 690 a cada mês, devido aos descontos de um empréstimo solicitado há alguns anos. A nora também contribui com os R$ 250 que recebe do auxílio emergencial.

Depois de pagar boletos de água e energia, não sobra quase nada para o supermercado. As contas não fecham: a cesta básica na capital cearense custa R$ 562,82, a unidade mais cara do Nordeste, de acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica, promovida pelo Dieese. O índice levou em conta a análise feita em julho de 2021.

Em meio à dificuldade, a solução encontrada é recorrer aos itens que “cabem no bolso” da família. “Compro mais salsichas, ovos e sardinha enlatada, que são mais baratos. A carne está muito cara”, diz Lúcia, desenhando o cenário que os especialistas consideram como um dos mais comuns quando o assunto é insegurança alimentar.

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Na casa de Lúcia, arroz com ovo é um prato mais comum do que deveria ser | ARTE: William Barros

O baixo custo dos alimentos ultraprocessados atrai o interesse das famílias em vulnerabilidade socioeconômica. Os produtos, no entanto, deixam a desejar na qualidade, conforme explica o nutricionista Ítalo Aguiar, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (GPSAN) da Universidade Estadual do Ceará (Uece): “O consumo excessivo desses itens causa aumento de peso, obesidade, aumento da pressão arterial, diabetes mellitus tipo dois, hipercolesterol e diversas outras doenças”.

Mestre em Saúde Pública, o especialista adverte que a IA não é sinônimo de fome. “Você pode estar em insegurança alimentar quando não tem nada para comer, assim como você também pode vivenciar a IA ao ter que ingerir salgadinhos industrializados e suco em pó, só porque são mais baratos”, explica.

O ingrediente Covid-19

Os índices de insegurança alimentar são preocupantes desde 2014, com o agravamento da crise econômica no país durante o governo de Dilma Rousseff. Mas em 2020, a pandemia de Covid-19 se tornou mais um ingrediente nesta receita indigesta.

Com o aumento do desemprego e a adoção de políticas de redução salarial, 44% dos brasileiros reduziram o consumo de carnes e 41% diminuíram a ingestão de frutas. É o que aponta a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN).

Proporção da alteração no consumo de alimentos saudáveis por adultos durante a pandemia, 2020

Queijo

Carnes

Leite

Ovos

Cereais / Leguminosas

Tubérculos

Hortaliças e Legumes

Frutas

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3,4%

3,2%

4,0%

18,8%

3,3%

5,7%

8,0%

9,4%

56,2%

40,4%

44,0%

31,1%

17,8%

23,7%

32,9%

36,8%

40,8%

52,8%

64,9%

63,4%

73,0%

61,4%

55,2%

49,7%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

100%

Aumentou

Ficou Igual

Diminuiu

Fonte: Food for Justice Working Paper Series

Um inquérito realizado por essa entidade mostrou que em 2020, a insegurança alimentar e a fome no Brasil retornaram aos patamares próximos aos do ano de 2004. Além disso, desde 2018, subiram os casos mais graves de IA. Nessa parte da escala, estão as famílias que passaram a conviver com a fome.

Foi o que aconteceu na casa de Lúcia em maio de 2020, período mais crítico da pandemia no Ceará. O filho mais velho, que vive de fazer bicos para complementar a renda, viu as oportunidades minguarem. “Passamos quase três dias sem ter nada mesmo na panela e sem poder comprar comida. Digo que foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, relembra a matriarca em meio às lágrimas.

A moradora do Genibaú e seus familiares têm contado com doações de conhecidos e iniciativas de projetos sociais. No dia anterior à entrevista para a reportagem, Lúcia esteve no Centro de Promoção da Vida Dom Helder Câmara para receber pratos de sopa, numa das raras oportunidades de consumir alguns legumes em sua rotina.

“Peço ajuda mesmo, não vou mentir. Agora mesmo, acabou o gás e fomos comprar. Está R$ 105, acredita? Pedi para minha irmã passar no cartão dela e parcelar em duas vezes. Sempre peço a ela, mas está virando uma bola de neve. É um sacrifício para conseguir pagar depois”, afirma.

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Coronavírus se tornou ingrediente amargo na receita indigesta da insegurança alimentar  | ARTE: William Barros

Para o nutricionista Ítalo Braga, a relação entre pandemia e insegurança alimentar vai muito além das dificuldades financeiras. Ele alerta que a deficiência de nutrientes ingeridos pode ser um “prato cheio” para a infecção pelo coronavírus.

“Alimentando-se mal, essas pessoas têm adquirido as doenças do grupo de risco da Covid. Estão vivendo agora em um contexto em que podem pegar uma doença que mata mais quem tem mais comorbidades. E em graus mais avançados, a insegurança alimentar deixa o sistema imunológico muito comprometido”, adverte o pesquisador.

De volta ao passado

Com retrocesso de quase 17 anos, o Brasil se aproxima do mesmo momento em que foi criada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Por meio desse índice, entidades ligadas aos direitos humanos e à erradicação da fome puderam medir os níveis de dificuldades enfrentadas pelas famílias brasileiras para colocar comida na mesa. A EBIA é assim definida:

Insegurança Alimentar

Quando a família/domicílio tem acesso regular e pemanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais

Insegurança Alimentar Leve

Quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso a alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade de alimentos

Insegurança Alimentar Moderada

Quando à redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos

Insegurança Alimentar Grave

Redução quantitativa de alimentos também entre crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.

As medições da escala demonstraram resultados positivos até 2013. Ano após ano, o número de brasileiros em situação de segurança alimentar cresceu. O processo foi fruto da adoção de políticas públicas governamentais voltadas para a alimentação e geração de renda.

Política vai à mesa

O elo entre política e insegurança alimentar no Brasil tem marco importante em 2006, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Além de tornar a segurança alimentar um direito de todos os brasileiros, essa medida determinou a criação de programas para solucionar o problema.

“Lula tinha a erradicação da fome como pauta prioritária. Nos dois mandatos dele, a gente viu muita voz sobre essa causa, no sentido de que a alimentação entrou na Constituição como um direito essencial. O Brasil fez a regulamentação dessa política ao longo da década de 2000 e se tornou referência mundial no combate à fome”, relembra Ítalo.

O tratamento dado a esse problema ganha outros contornos a partir de 2016, quando o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional n.º 95. Também conhecida como PEC 95, a medida limitou pelos próximos 20 anos o teto dos gastos do Governo Federal com políticas públicas, incluindo o enfrentamento à insegurança alimentar.

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No caldeirão da política, enquanto alguns presidentes pautaram insegurança alimentar, outros decidiram ignorá-la  | ARTE: William Barros

Mas para o mestre em Saúde Pública, o combate à IA sofreu seu “maior golpe” em 2019. Logo nos primeiros dias de governo, Jair Bolsonaro extinguiu dispositivos ligados ao combate à fome, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e o Ministério do Desenvolvimento Social.

“O Consea era um órgão com muita experiência, referência em todo o mundo. Ele congregava sociedade civil e governo para discutir políticas de segurança alimentar, assessorava a presidência nesse sentido. Ainda existem órgãos similares no Ceará e em outros estados, mas a extinção nacional foi nosso maior golpe”, avalia.

2004

2006

2013

2016

2019

2020

Criada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)

Lula sanciona a Lei Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Congresso aprova a PEC 95, que limita gastos com políticas públicas

60%

dos domicílios em insegurança alimentar

22%

dos domicílios em insegurança alimentar

Bolsonaro extingue o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e nutricional (Consea) e o Ministério do Desenvolvimento Social

Durante a pandemia, nível de insegurança alimentar retorna ao patamar de 2004

59%

dos domicílios em insegurança alimentar

O retrocesso político se tornou mais notório durante a pandemia, segundo explica Aguiar. Na visão dele, falta diálogo entre os governantes. “As medidas de controle da Covid foram necessárias, mas não houve articulação entre o Governo Federal, estados e municípios. O auxílio emergencial foi insuficiente. Tudo isso piorou a situação de insegurança alimentar”, diz.

No Ceará, o governador Camilo Santana adotou políticas relacionadas à temática durante a pandemia, como o Auxílio Cesta Básica e a distribuição de kits alimentares para estudantes de escolas públicas. Para Ítalo, sem essas medidas, a situação poderia ser bem pior no estado.

“Existem coisas que fogem da possibilidade de um governador ter controle. Nosso estado, historicamente, está em desvantagem econômica com relação aos estados do Sul. Isso poderia ser um fator que levaria a um desastre muito grande”, explica.

Se o senso comum pede que a discussão política fique distante da mesa, o pesquisador acredita que a aproximação desses dois assuntos pode ajudar a resolver o problema. Com as eleições de 2022 cada vez mais perto, Ítalo aconselha que a população vote em candidatos que pautam a questão da insegurança alimentar..

Crescer o PIB, pagar a dívida externa e tornar o Brasil mais competitivo são pautas importantes, mas ninguém come PIB. Esse índice pode aumentar, mas a insegurança alimentar aumenta junto. Nosso país tem experiências de sucesso na sua própria história e que podem ajudar a resolver esse problema, mas isso depende do nosso voto em 2022

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diz o nutricionista Ítalo Aguiar

Fome não pode esperar

Quando conversou com a equipe de reportagem, Lúcia tinha os seguintes itens em sua cozinha: farinha, massa de milho, 1 kg de açúcar, macarrão e meio pacote de feijão. O cardápio está bem longe de ser o ideal para a saúde da aposentada, que convive com a intolerância à lactose e problemas gastrointestinais.

O médico me disse para priorizar comer peixe, mas não tenho condições de comprar. Às vezes, como só arroz e feijão mesmo ou só o macarrão branco. E se eu quiser tomar leite, tem que ser 'zero lactose', que não é nada barato

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pondera Lúcia Carvalho

Ouça o relato de Lúcia:

Enquanto a pandemia não acaba e a vida não se reorganiza, Lúcia espera ingressar em programas de apoio à alimentação oferecidos pela Prefeitura de Fortaleza. Recentemente, ela solicitou sua inscrição no cadastro para recebimento de cestas básicas. Por enquanto, ainda não obteve resposta, mas aguarda o resultado com muita esperança.

Dependendo de doações para comer, desamparada pelas autoridades e sem perspectivas a curto prazo para melhorar de vida, Lúcia recorre à fé para seguir firme: “Espero um milagre de Deus, para que meus filhos consigam trabalhar. Tenho esperança, porque Ele é maravilhoso e faz a obra na hora certa”.

Quando a fome atinge a infância

Na casa de Claudilene Queiroz, de 34 anos, o cenário de desamparo se repete. Desempregada e mãe-solo de três filhas, ela conta que a principal fonte de renda vem do auxílio emergencial no valor de R$375.

Do benefício, R$150 são destinados  para ajudar a mãe, com quem divide a casa, nas despesas das contas de água e luz. O restante do dinheiro é usado para comprar os alimentos e o leite especial para a filha caçula, de 1 mês de vida, pois não consegue amamentá-la.

"Me sinto muito triste e chateada. Tem esse auxílio de R$375, mas em compensação teve o aumento de tudo", lamenta.

Por causa da alta dos alimentos, a carne bovina deixou de ser consumida na casa de Claudilene. No lugar da proteína, aparecem o ovo e a mortadela como ingredientes principais.

"Até o ovo tá caro. Aqui perto da minha casa tem um supermercado que graças a Deus está tendo umas promoções lá. Eu compro uma mortadela daquelas grandes de 3kg de R$12 a R$15 pra mim e pra minha filha maior se manter porque ela já come tudo", conta.

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Devido ao baixo custo, mortadela tem se tornado alimento cada vez mais presente na casa de Claudilene  | ARTE: William Barros

No mês de julho, 1 kg de carne custou R$43 no bolso dos fortalezenses, segundo o levantamento realizado pelo Dieese. De acordo com o departamento de pesquisas, Fortaleza foi a capital brasileira que sofreu a maior alta no valor da cesta básica durante o período, com uma variação de 3,92% em relação a junho.

Prejuízos no desenvolvimento

Além da bebê de 1 mês, Claudilene também é mãe de uma menina de 11 anos e de outra criança de 1 ano e 8 meses. Ela explica que apesar das dificuldades, sempre lutou para não deixar faltar comida na mesa para as filhas mais velhas.

Eu sim [deixei de comer], só não deixo as minhas filhas. A gente come o que tem, eu me viro aqui com elas. Faço um cuscuz, um café. Às vezes no almoço, a gente almoça isso, o que tiver a gente come

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compartilha Claudilene Queiroz

Ouça o relato de Claudilene:

A nutricionista e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), Virgínia Guerra, esclarece que a primeira infância, sobretudo até os dois anos de idade, é o período mais importante para o desenvolvimento de uma criança. Por isso, quando a insegurança alimentar atinge essa idade, os danos podem ser irreversíveis.

“Mesmo que a criança volte a ter uma alimentação normal e ela volte a consumir a quantidade de ferro suficiente, ela não consegue repor aquilo que ela não ganhou. Então a gente diz que isso é irreversível”, explana a professora.

Virgínia explica que é nessa fase que ocorre o desenvolvimento cerebral de uma pessoa. Com a falta dos nutrientes adequados, as  crianças podem apresentar problemas cognitivos, o que pode dificultar o aprendizado na escola.

“O primeiro impacto é na cognição dessas crianças. Isso socialmente é terrível porque eu vou ter uma população que não vai ser capaz de entrar no mercado de trabalho porque ela [criança] vai acabar desistindo da escola porque fica repetindo ou então passa de ano, mas não aprendeu o mínimo básico”, pontua.

Proporção da situação de segurança alimentar nos domicílios entrevistados, conforme grupos de idade dos moradores, 2020

10%

42,6%

38,8%

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40%

30%

20%

29,3%

33,3%

16,8%

20,5%

14,0%

20,6%

15,4%

12,5%

14,5%

13,8%

30,5%

31,9%

33,6%

31,9%

0%

Até 4 anos

Entre 5 e 17 

Entre 18 e 59

50 anos ou mais

Segurança

Insegurança Leve

Insegurança Moderada

Insegurança Grave

Fonte: Food for Justice Working Paper Series

Fome oculta

Assim como na casa de Claudilene, outras milhares de famílias brasileiras encontraram na comida ultraprocessada uma alternativa para suprir a fome. Por serem ricos em gorduras e calorias, mas pobres em nutrientes, esses alimentos geram um fenômeno conhecido como "fome oculta", como explica a nutricionista Patrícia Leite.

“A gente pensa na insegurança só nessa criança que está desnutrida e magrinha. Mas a gente também precisa ter atenção na insegurança que acontece quando a qualidade dos alimentos não é atingida. Isso é bem mais comum do que a gente acha. Muitas pessoas não conseguem garantir todos os nutrientes”, ressalta.

A carência desses nutrientes pode prejudicar não só o desenvolvimento cognitivo da  criança, mas também o crescimento ósseo e dos tecidos corporais.

Para que a criança cresça, para que ela tenha o desenvolvimento ósseo, ela precisa do cálcio. Para que a criança não tenha anemia, ela precisa do ferro. Para outros processos, como renovação das células, crescimento e desenvolvimento, ela precisa de vitamina A e zinco. Os riscos são não crescer, não se desenvolver, ou ainda adquirir doenças crônicas ao longo do tempo

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diz Patrícia Leite

Entre as doenças que podem surgir precocemente por causa desse processo de substituição de alimentos in natura por ultraprocessados, a nutricionista destaca a obesidade, diabetes, hipertensão e o colesterol alto.

“Muitas crianças com 7 ou 8 anos de idade já têm colesterol elevado, já têm alteração ao açúcar no sangue. Isso por causa de uma alimentação pobre em nutrientes, vitaminas e minerais, e muito rica em gorduras e açúcares que são esses alimentos que vão sendo mais baratos e fáceis de serem adquiridos”, completa.

Dificuldade coletiva

Carlos de Lima, motorista de 38 anos, afirma que a sua alimentação se modificou de forma negativa nos últimos meses e, por causa disso, também precisou recorrer à substituição de carne por alimentos processados

A alimentação diária do motorista é, muitas vezes, insuficiente para um dia de trabalho.

“Tem dias que minha alimentação é bastante para aguentar o dia-a-dia, que eu trabalho como motorista, mas tem vezes que não tenho tempo para tomar café da manhã, aí a gente pena”.

Ouça o relato de Carlos:

Fátima Sousa, de 32 anos, é outra vítima da insegurança alimentar: “O dinheiro que a gente arruma só dá para alimentação básica, só dá para comprar o básico”. Ela conta que seus filhos não se alimentam da forma que gostariam, pois adoram comer frutas, biscoitos e tomar suco, mas, no momento atual, não tem condição de comprar esses alimentos.

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Preços altos têm feito com que alimentos essenciais sumam da mesa dos brasileiros mais vulneráveis  | ARTE: William Barros

Substituições indigestas

 A vida de Rejane da Silva era muito diferente antes da pandemia. Ela trabalhava como costureira no bairro Genibaú, e sua renda era suficiente para sustentar a ela e à filha. A mulher de 43 anos planejava pagar um curso de costura para a filha, mas em 2018 a menina foi diagnosticada com porfiria.

Essa é uma doença raríssima, com menos de 15 mil casos por ano, de acordo com o Hospital Albert Einstein. Entre os sintomas mais comuns estão  lesões na pele, dor abdominal e distúrbios mentais, erroneamente interpretados como psiquiátricos.

Há mais de 3 anos, Rejane está sem trabalhar formalmente, porque precisa dar suporte para a filha: “Ela depende muito de mim para ir aos médicos. Hoje, eu não posso mais trabalhar fora, porque ela virou cadeirante, aí eu não estou mais trabalhando”. A mulher conta ser muito difícil conseguir se manter tendo que comprar remédios de R$300,00 por mês.

A ex-costureira não recebe bolsa família ou auxílio emergencial e, apesar de ter o auxílio-doença, afirma que não é suficiente para pagar as contas de água e energia, gás, medicamentos e alimentação.

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Rejane viu sua vida mudar completamente desde a doença da filha  | ARTE: William Barros

A questão alimentar é uma das que mais se modificaram para Rejane, em partes por causa da doença da filha, mas também por causa da pandemia. Com o aumento no preço de vários alimentos, sua rotina se modificou: “Eu nunca mais pude comer carne; como mais ovo. Mas as coisas dela [filha], eu não deixo passar, porque à noite, a sopa dela é necessária”.

 A filha de Rejane precisa comer fígado ao menos uma vez na semana devido   à anemia, mas a mulher afirma que não pôde comprar a proteína no mês de agosto: “Não sobra dinheiro: o gás acabou e tive que comprar, não posso ficar sem, posso precisar fazer um chá para ela ou algo assim”.

A ex-costureira Rejane disse ainda que pular refeições ou deixar de fazê-las é algo recorrente em sua rotina. “O que tenho agora na dispensa é arroz, 1 kg de salsicha, e algumas verdurinhas”. Para esse momento, o que Rejane mais quer é a cura de sua filha: “Se ela tivesse cura, eu iria trabalhar, com o que fosse, eu tenho coragem de trabalhar, eu só não faço roubar”.

Alimentação saudável e acessível

Para a nutricionista Bruna Pereira, os processados devem ser evitados a todo custo: “O consumo desses alimentos está associado à ocorrência do aparecimento de alguns tipos de cânceres, principalmente colorretal. Além disso, outras patologias, como gastrite, refluxo e hipertensão têm sim uma piora”.

Sobre o consumo de ovo, a nutricionista afirma: “Não precisa ser consumido somente frito ou cozido, pode ser em forma de panqueca ou crepioca, também tem o omelete; podemos utilizar da criatividade!”. Além disso, Bruna diz que a soja, proteína vegetal, pode ser utilizada em diversas variações.

De acordo com a nutricionista, os brasileiros que possuem uma renda baixa, apesar das várias dificuldades, ainda podem, sim, ter uma alimentação ao menos 80% saudável, já que alcançar a taxa de 100% não é possível.

Ela dá algumas dicas de como se alimentar de forma acessível sem precisar recorrer aos processados: “Tem locais que vendem [alguns tipos mais baratos de peixe, frango ou soja] mais em conta, como feiras; é sempre bom ir nesses locais, pois em alguns horários eles fazem redução dos preços. Podemos procurar por promoções, não indo somente em um supermercado”.

“O acesso em favelas e periferias é mais difícil ainda: precisamos de políticas públicas voltadas para essa população, com necessidades mais específicas. Essa parte da população precisa de maior atenção”.

Pessoas que ajudam

O Centro de Promoção da Vida Hélder Câmara é um projeto que partiu de uma iniciativa da Igreja Católica, com o objetivo de trabalhar o desenvolvimento local e solidário. A instituição surgiu nos anos 2000 e, por meio de editais nacionais e internacionais, aprova recursos  destinados às cestas básicas e materiais de higiene e limpeza.

De acordo com Mirson Sousa, coordenador do projeto, o Centro doa, desde o início da pandemia, a média de 250 cestas básicas por mês, além de prestar outros tipos de ajuda. Ele conta que as famílias auxiliadas  “estariam se alimentando com muita dificuldade, pois o dirigente máximo do país não respeita a vida, levando as pessoas ao desemprego, à fome e à miséria". 

O coordenador reforça: “Quem se interessar em ajudar o nosso projeto, estamos sempre em campanha de arrecadação, de recursos financeiros, materiais de higiene e limpeza. Basta entrar em contato através de nosso número: (85) 991957647, ou nas nossas redes sociais”.

Este projeto é apenas um dos vários que estão ajudando pessoas em situação de insegurança alimentar em Fortaleza. Também podem ser citados o Ser Ponte Fortaleza e o Movimento de luta dos bairros e favelas.

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