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 TRADIÇÃO 

 COMIDA 

 AFETIVIDADE 

Afetividade, história e resistência:
do que a comida pode nos nutrir?

 Amantes e pesquisadores do ato de comer compartilham a importância múltipla da alimentação, para além do banal valor físico-nutritivo, e refletem como a comida também pode carregar outros sentidos 

A

 
       magnitude do ato de comer pode ser amplificada e incluir significados diversos, para além da ingestão de nutrientes. Conforme explicado e demonstrado por pesquisadores, a alimentação funciona como uma linha do tempo capaz de contar histórias de povos e grupos sociais, de famílias e de espaços geográficos. Plantar, colher, selecionar, cozinhar e propagar sabores condiz também com a autonomia, a autoestima e a resistência cultural, social e econômica.

Dada a importância da alimentação para a vida humana, é importante pensar em como, ao longo da história, os modos de preparo tomaram formas e foram moldados por várias pessoas, mediante vários motivos e com vários resultados. Não poderia ter sido diferente durante a pandemia de Covid-19, período responsável por alterar a sociabilidade humana mundial.

Ao passo que as vendas por serviços de entrega, o delivery, subiram de 30,4% em 2019 para 54,8% em 2021 no Brasil, conforme pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL/SPC), restaurantes e lanchonetes fecharam as portas devido às medidas de combate ao coronavírus. Se antes as pessoas saíam de suas casas para comemorar, confraternizar ou criar memórias em restaurantes e outros estabelecimentos, durante o isolamento social a comida, historicamente responsável por unir as pessoas ao redor da mesa, chegou por outros meios.

Cozinhas fantasmas e a resistência afetiva

Em 2020, primeiro ano da pandemia, mais de oito mil bares e restaurantes pararam de funcionar no Ceará. Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes do Estado (Abrasel-CE), este número representa cerca de 40% do segmento estadual. Buscando alternativas ao fechamento durante o isolamento social, as dark kitchens (no português, “cozinhas fantasmas”), surgiram como uma possibilidade para os empreendedores da categoria.

Esse formato funciona sem os tradicionais salões de recepção aos clientes. Isto é, apenas a cozinha trabalha, enquanto a comida chega ao consumidor pelas mãos dos entregadores, e não dos garçons. Apesar disso, as dark kitchens não devem estar associadas tão somente ao fechamento de estabelecimentos. Alguns empreendedores, como a jornalista e padeira Kerla Alencar, de 45 anos, enxergam na modalidade uma oportunidade de expansão.

O contato de Kerla com a panificação vem desde a infância, quando ajudava o pai a fazer pães. Mas foi só em 2015, após se profissionalizar, que ela fundou a Pequena Padaria Caseira. Desde então presente no ambiente virtual, as mudanças requeridas pelo isolamento social não lhe foram totalmente desconhecidas, segundo conta. Foi no período pandêmico, até, que Kerla percebeu seu negócio alavancar. Sabendo disso, ela não demonstra interesse em mudar o funcionamento da  padaria. “Mas esse formato também é difícil, desperta exaustão física e mental”, lembra.

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Turma da oficina de pães da Kerla em Peroba/Icapuí CE (Foto: Arquivo pessoal)

No “boca a boca”, a cearense conseguiu renovar e ampliar sua rede de clientes e de amigos. Segundo ela, seus pães têm aproximado pessoas, pois são como abraços à  distância. Os clientes telefonam, explicam suas encomendas e solicitam o envio para alguém querido — muitas vezes, pedindo de Kerla até um recado especial escrito nas embalagens. Seu trabalho artesanal chegou a ser considerado um dos melhores de Fortaleza em 2020 pelo site Sabores da Cidade.

A ausência de um salão para serviço presencial não tira da comida o propósito de unir pessoas em torno de um prato, ela destaca. “Como eu trabalho somente na internet e não tenho espaço físico, eu converso muito com meus clientes, muitos viraram meus amigos. Eu conheço os gostos e restrições de muitos deles. Então, assim, eu faço o pão que cada um pediu”, diz. Kerla conscientiza ainda sobre um preparo alimentar voltado à nutrição com cultura, afeto e, claro, nutrientes.

Comida que aproxima, mesmo à  distância

Para além dos estabelecimentos fechados ou reestruturados, muitas pessoas reconsideraram suas formas de aquisição e consumo alimentares, ainda devido às medidas de segurança resultantes da pandemia. Um dos maiores exemplos  disso tem sido a predominância dos serviços de entrega, uma prática em crescimento desde antes do período pandêmico, mas que foi intensificada e ampliada frente à  necessidade de uma rotina dentro de casa

Parece um sistema simples: quem precisa de alimentos realiza um pedido — seja por telefonema ou aplicativo — a quem fornece, e a aquisição é entregue na porta de casa ou no portão do prédio por uma terceira pessoa, aquela que entrega. O delivery, porém, pode ser um sistema com interpretações além do rotineiro, como a feita por Juan Tavares, 24. Quando se aproximava a data de aniversário de um amigo, o estudante de Jornalismo decidiu usar o delivery a seu favor e, de quebra, manter laços afetivos por meio da comida.

De todos os presentes possíveis para enviar ao amigo, que estava no Recife, capital de Pernambuco, Juan escolheu um bolo. “Inusitada e bem curiosa”, a entrega do bolo só começou a ser executada no início da noite de aniversário do amigo. Juan encontrou um estabelecimento em Recife e acompanhou, de Fortaleza, o delivery. “Como [o aniversário] caiu em um dia de semana, imaginei que ele e os amigos tivessem pouco tempo para organizar algo e resolvi daqui”, relata.

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Umas das práticas relacionadas a pandemia de covid-19 foram os aniversários no formato drive thru, como foi o caso de Carolinne Macedo | ARTE: Mikaelle Nascimento

Além do delivery, outro termo da língua inglesa popularizado em meio às mudanças causadas pela pandemia foi o drive-thru. É uma contração de “drive through”, que, em tradução livre, significa “dirigir através”. Nessa estrutura, as pessoas podem dirigir automóveis em amplos ambientes para realizar atividades passíveis de serem realizadas sem um veículo, como assistir a um filme ou ordenar e coletar pedidos de comida. O aniversário de 30 anos da farmacêutica Carolinne Macedo foi uma espécie de mistura dessas duas possibilidades.

Em julho do ano passado, a cearense radicada em Palmas, no Tocantins, foi surpreendida com quase uma dezena de carros em frente à sua casa. Sua mãe e irmã haviam organizado um “aniversário drive-thru surpresa” com direito a cestas de quitutes e uma alusão ao cinema. Apaixonada por comer e por assistir filmes, Carolinne foi banhada por um misto de contentamento e curiosidade. “Foi uma coisa que eu nunca vou esquecer. Foi estranho não poder abraçar meus amigos, ter que dar tchau para todo mundo de longe. Mas foi muito curioso”, relata.

Amigos e familiares de Carolinne celebraram seus 30 anos em “aniversário surpresa drive-th

Amigos e familiares de Carolinne celebraram seus 30 anos em “aniversário surpresa drive-thru” (Foto: Arquivo pessoal)

Quem compareceu ao drive-thru de Carolinne recebeu um pacote com doces, salgadinhos, pipoca, cupcake e refrigerante. “A comida une as pessoas, né? A gente recebe muitas pessoas em casa e nenhuma das vezes a gente pensa em receber que não seja oferecendo comida. É uma maneira de confraternizar, é uma maneira de estar junto”, explica a farmacêutica. De aniversários a natais, muitas memórias positivas de Carolinne estão associadas ao ato de comer, ela afirma.

Ser feliz através da comida é muito fácil e muito gostoso

diz a farmacêutica ​Carolinne Macedo

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Comida: uma máquina do tempo

Na pandemia, discussões pertinentes sobre o ato de comer foram escancaradas. Não só devido à reestruturação dos espaços de convívio (e consumo) social e às celebrações adaptadas, mas também frente a ameaças a direitos básicos — como a alimentação, a soberania e a segurança alimentar e nutricional — expressos no artigo 6º da Constituição Federal.

O alimento, responsável por nutrir a sociedade em diversos aspectos, é a pauta principal do Observatório Cearense da Cultura Alimentar (OCCA). O grupo existe desde 2017 e tem a missão de pesquisar, fomentar e difundir a cultura alimentar, além de se constituir como um espaço de elaboração de conhecimento, sistematização, análise e divulgação de dados concernentes às diversas cadeias de produção, consumo e difusão da cultura alimentar no Ceará.

O professor Roberto Araújo, 56, um dos fundadores do OCCA, explica ser fundamental que a população tome consciência daquilo que os fazem pertencer à história e à geografia de um espaço. Ele destaca ainda o acolhimento de novos elementos que contribuem para a transformação e para a consequente construção de novas narrativas. “O que define a cultura alimentar de um povo não é se é ou não originária do país, mas é a relação cultural que se constrói com aquilo, é a relação cultural que se constrói com aquele alimento. É esse pertencimento que define a cultura alimentar”, comenta o pesquisador.

Além disso, Araújo explica que quando não há aproximação e consciência sobre o ato de comer, torna-se mais difícil resistir social e culturalmente a um sistema que coloca a padronização da alimentação como o certo a ser seguido, tentando dia após dia apagar a narrativa de povos historicamente oprimidos. Plantar, colher, saber a origem do alimento e preservar os espaços de colheita é uma forma de resistir e permanecer durante o tempo.

A comida, assim como a língua falada pelos povos, é um elemento de referência, de identidade e pertencimento dos povos, dos grupos. E a comida é cultura em todo o seu trajeto

diz o professor e fundador do OCCA, Roberto Araújo

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Assista ao Minidoc! Do Que a Comida Pode Nos Nutrir?

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